Dos streamings à realidade
Alícia Gouveia, Baárbara Martinez e Bruna Fernandes contam sobre os bastidores do jornalismo e as semelhanças e diferenças com a série The Bold Type
Três meninas em um carro com rostos iluminados por seus celulares seria o cenário perfeito para uma road trip cheia de risadas e momentos engraçados. Quando abro a câmera para a videoconferência, me surpreendo com jovens profissionais que dividem o cotidiano com pautas, matérias e muito bom humor. Alícia Gouveia, Baárbara Martinez e Bruna Fernandes vivem o ritmo da redação do site Glamurama e relatam alguns dilemas do jornalismo feminino hoje. É a realidade, mas poderia ser o roteiro da série The Bold Type.

Play Time
Sutton Brady, Jane Sloan e Kat Edison trabalham na revista feminina Scarlet. Enfrentando questões pessoais e profissionais, o trio passa por altos e baixos sob o comando de Jackeline Carlyle, diretora de redação compreensiva, acolhedora e que deixa lições de vida inesquecíveis a sua equipe. A série americana foi baseada na vida de Joanna Coles, ex-editora-chefe da Cosmopolitan estadunidense que foi publicada no Brasil sob o título de Nova pela Editora Abril até 2018. Lançada pela rede de televisão Free Form em 2017, a série está no catálogo da Netflix há quatro meses.

Corta para 2021. Alícia Gouveia é repórter recém-graduada pela Faculdade Cásper Líbero, Baárbara Martinez já está no mercado editorial com produção de conteúdo em vários formatos e Bruna Fernandes é social media com formação em Publicidade. Com uma semana de diferença, as três chegaram à redação do Glamurama, site de variedades que está no ar há 21 anos e integra o mesmo grupo editorial de títulos impressos, como as revistas JP e Poder, comandados pela jornalista Joice Pascowitch. O convívio diário e o companheirismo lembram cenas do cotidiano irreverente de The Bold Type.
Episódios da realidade
“Eu sempre gostei de séries para relaxar como essa, e logo fui associada a Sutton por ser loira e por estar namorando”, declarou Alícia sobre a personagem que deseja crescer no trabalho com sua paixão por moda e ainda vive um relacionamento com o advogado Richard Hunter. À frente das redes sociais, Bruna foi associada a Kat que cuida da repercussão das matérias da revista no ambiente on-line. A experiência no mercado editorial em blogs, redes sociais e newsletter fez Baárbara se identificar com Jane Sloan, a jovem escritora que confronta as pautas da revista com a própria vida em episódios memoráveis por toda a série. Na vida ou na ficção, o gosto pela escrita é uma verdade.
Coincidências à parte, o que é vivido nos streamings nem sempre acontece nos corredores da vida real. “O Glamurama é em uma casa e não tem o estereótipo de uma redação”, enfatiza Bruna. Nos bastidores de uma revista feminina como a Scarlet, a série aborda problemas envolvendo jornalismo, vida pessoal e dilemas femininos. Em se tratando de trabalho, o tempo para produção de conteúdo é bem diferente do que a série mostra. “A Jane demora uma semana para fazer uma pauta. Se eu fizer isso, perco meu emprego”, disse Alícia aos risos. “Entro no Instagram e já tenho três pautas em dez minutos”, completou a repórter sobre o fluxo de trabalho que enfrenta diariamente.
Na quarta da temporada da série, a revista Scarlet passa por transformações e abandona a edição impressa. Muito diferente da festa de lançamento do site e do glamour das produções das jovens personagens da trama, o relançamento do Glamurama foi fruto de muito trabalho. “O site se repaginou de uma forma muito tensa e com um nível de estresse absurdo, muito diferente da série. Elas estavam de roupa de gala e nós, com os cabelos presos e esgotadas”, relatou Bruna sobre a rotina para se adaptar aos novos tempos da internet com a chegada das redes sociais.
O trio da vida real revela que também percebe certa rivalidade feminina no mundo corporativo. Não apenas no mercado editorial, a competitividade entre mulheres é percebida como um posicionamento. “O jornalismo de ego” ainda é uma realidade hoje.
O assunto também pauta o relacionamento com a chefia, uma das razões do sucesso do seriado. Jacqueline Carlyle funcionaria nos dias de hoje?, perguntei querendo saber mais sobre a percepção do mercado. “É irreal e não seria funcional para o mundo corporativo”, respondeu Alícia. Naquele mundo criado pela série, a concepção do personagem funciona, mas a luta pelos direitos e pela voz feminina pode precisar de uma postura mais incisiva.
A saída de Jane Sloan da revista foi um dos momentos citados pelo trio. Com a chance de ter sua própria voz em outra publicação, a jovem percebe, apenas depois de contratada, que o título não fazia parte de seus propósitos. Com a edição brusca de seu texto para a versão final, a reação dos leitores foi agressiva e Jane concede uma entrevista para se explicar. Uma saia justa que Jacqueline Carlyle nunca permitiria que acontecesse com seu time. “Já tive problemas com uma nota, mas o editor assumiu a responsabilidade”, declarou Alícia. São situações não tão comuns, mas podem acontecer. Sobre a questão feminina, Baárbara completa que existem mudanças acontecendo. “Fomos ensinadas a ser boazinhas e aceitar tudo. Nós estamos sendo educadas para uma nova postura no trabalho”, declarou sobre as relações mantidas pelas protagonistas com outros personagens.
Seguindo o roteiro, a série alterna cenas de drama e momentos com música pop, assim como temas espinhosos são tratados de forma leve. Machismo, racismo, privilégios sociais, além do empoderamento feminino são abordados em muitas situações nos bastidores da Scarlet Magazine. “O público da série já uma galera que discute pautas sociais”, disse Alícia que, mesmo reconhecendo que o seriado trata temas polêmicos de forma rasa, afirma que o seriado atende seu público. “Eu me identifiquei com a série de cara para me distrair”, exemplificou.
A repórter Baárbara Martinez enfatizou que pautas de qualquer veículo de comunicação passam, inevitavelmente, pelas experiências de que as escreve. “Já fiz entrevista e já me emocionei muito”, destacou. Relembrando a experiência com a cantora Duda Beat, a jornalista disse foi às lágrimas pelos temas e pelo fluxo da conversa. “Falar com ela me emocionou muito”, declarou.

Mais que amigas, friends!
Com o convívio diário na redação do Glamurama, o trio percebe que os valores de amizade e companheirismo vão além das horas em frente ao computador. “Não tivemos a obrigação de ser amigas. Simplesmente, aconteceu”, disse Baárbara. Na época em que trabalhou em agência de publicidade, Bruna disse que não costumava ter o contato com as pessoas como tem com suas companheiras de trabalho hoje. “Depois do home office, começamos a sair para falar sobre coisas da vida. Ficamos amigas pessoais”, declarou.
Com a câmera apontada para seus rostos, o trio no banco de trás do carro está pronto para percorrer uma estrada. Das telas dos streamings para a vida, é possível viver um roteiro escrito a várias mãos, com temporadas longas e curtas, cenas marcantes e situações improváveis. “Vocês se parecem muito com as meninas da série”, disse envolvido pelo carisma e pelo bom humor do trio. “Podíamos gravar The Bold Type Brasil”, disse Bruna aos risos.
Entre as telas do computador e do celular, a foto registrada poderia estar nas cenas de abertura da série. Aquele momento faria parte de mais um episódio vivido por jovens profissionais que trilham seus próprios caminhos. Laços femininos que compartilham momentos no trabalho e na vida.

Ivan Reis é graduado em Letras, especialista em Literatura e mestre em Linguística Aplicada. Atua como revisor e preparador de texto, mas gosta mesmo é de ler, escrever e tomar sorvete nas horas vagas. E-mail: ivan.reis@hotmail.com