“Creio que se pode chamar pré-modernista tudo o que, nas primeiras décadas do século, problematiza a nossa realidade social e cultural”, disse o recém-falecido crítico literário Alfredo Bosi em História Concisa da Literatura Brasileira (2017, p. 327). Segundo Bosi, o período que abarca o fim do século XIX e início do século XX espectou um país que se desenvolvia ao custo de sérios desequilíbrios, em que forças tradicionais agrárias conflitavam com ideais burgueses liberalizantes e importados da Europa e dos EUA.
Como sabemos, a cultura acaba por refletir os contextos nos quais se encontra e, assim, nessa fase, viu-se na literatura uma tentativa de compêndio de correntes opostas:
A centrípeta, de volta ao Brasil real, que vinha do Euclides sertanejo, do Lobato rural e do Lima Barreto urbano; e a centrífuga, o velho transoceanismo, que continuava selando a nossa condição de país periférico a valorizar fatalmente tudo o que chegava da Europa. Ora, a Europa do primeiro pós-guerra era visceralmente irracionalista. (BOSI, 2017, p. 326).
Ainda de acordo com Bosi, foi papel de Lima Barreto, Graça Aranha, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Viana, Manuel Bonfim e Monteiro Lobato refletir na escrita as tais tensões nacionais.
José Bento Renato Monteiro Lobato – cujo segundo nome, Bento, veio de uma mudança realizada pelo próprio autor para usar uma bengala de seu pai – nasceu na Taubaté de 1882 e faleceu na capital paulista em 1948, vítima de tuberculose. Ainda em criança, escrevia pequenos textos e participava de jornais da escola. Quando adulto, formou-se em Direito e, além de ensaísta, editor e tradutor, tornou-se nacionalista, militante e defensor do progresso do país, capturando, em suas obras, os entraves sociais vivenciados no Brasil da I República.
Como escritor, Monteiro Lobato sobressaiu-se enquanto contista e tornou-se popularmente conhecido por produzir literatura infantil, o que corresponde a quase metade de toda a sua produção literária. Nas obras infantis, valeu-se de linguagem simples, aliando realidade e fantasia; na escrita, fragmentou costumes rurais quase sempre de forma satírica.
“Monteiro Lobato soube, como poucos, captar as ideias de sua época e construir uma obra literária, muitas vezes incompreendida pelos intelectuais de sua geração” (BECKER, 2011, p. 3). Dada a natureza subversiva do escritor, é provável que Nietzsche o classificasse como um espírito livre, aquele que podia não ter as opiniões mais corretas, mas que, diferente dos espíritos cativos vinculados à moral predominante:
Pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é a exceção, os espíritos cativos são a regra; estes lhe objetam que seus princípios livres têm origem na ânsia de ser notado ou até mesmo levam à inferência de atos livres, isto é, inconciliáveis com a moral cativa. (NIETZSCHE, 2005, n.p).
Essa independência de ideias rendeu a Lobato alcunhas contraditórias. Às vezes era tido como reacionário, às vezes era considerado um comunista: “O padre Sales Brasil escreveu um libelo contra Lobato chamado ‘A literatura infantil de Monteiro Lobato ou comunismo para crianças’” após o lançamento do seu livro História do Mundo Para Crianças, obra censurada pelo Governo Português, criticada duramente pelo Governo Brasileiro e queimada nas santas fogueiras católicas, conforme descreve a breve biografia do autor prefaciada no livro Urupês.
A partir de 2010, anos após sua morte, há na mídia, no ensino e nos meios jurídicos um embate baseado na acusação de racismo na obra de Monteiro Lobato. Tal discussão deriva do adjetivo “macaca de carvão” atribuído à Tia Nastácia, personagem negra das Caçadas de Pedrinho (livro publicado em 1933) e referida por Lobato como “pessoa de carne preta”. Nessa esteira, alguns críticos, tomando como base certas correspondências e outros textos do autor, colocam-no no lugar de eugenista, vez que acreditava que a miscigenação prejudicava a formação de um “povo brasileiro”. A herdade não deixa de estar correta, já que Lobato:
Era, inclusive, membro da Sociedade Eugênica de São Paulo, grupo que pregava a superioridade da raça branca sobre as demais. Em correspondência a um amigo, não escondeu que defendia a atuação da Ku Klux Klan no Brasil, grupo racista que promovia assassinatos, linchamentos e outras atrocidades contra negros nos Estados Unidos. (FERES; NASCIMENTO ET AL, 2013, apud EDITORIA Z EDIÇÕES, 2019).
Em O Presidente Negro (publicação de 1926), único romance que escreveu, Lobato narra uma luta racial no distópico ano de 2228, “antecipa tecnologias que se tornariam corriqueiras no nosso cotidiano como a internet” (CAMARGOS E SACCHETA, 2009, n.p) e deixa transparecer um esteio ao politicamente incorreto, com menções de que os países tropicais enfraqueceram-se pela miscigenação enquanto os Estados Unidos se fortaleceram com uma espécie de apartheid consensual.
Críticos pontuam que tais assinalações “reverberam as teses eugenistas que defendem uma seleção nas coletividades humanas tendo como base leis genéticas” (CAMARGOS E SACHETA, 2009, n.p) defendidas pelo autor. Por outro lado, a obra também lança luz sobre as contradições da sociedade norte-americana e “mostra o conflito sob a perspectiva do próprio negro de modo que só tem paralelo em Negrinha” (CAMARGOS E SACCHETA, 2009, n.p). O personagem negro em questão chama-se Jim Roy que, em retrospecção, recorda humilhações sofridas por sua raça nos tempos anteriores.
É justamente em Negrinha, obra adulta acima mencionada, que encontramos uma intercessão a Monteiro Lobato. Defensores alegam que, por denunciar vestígios de uma sociedade escravocrata, nesta narrativa o polêmico escritor anula a hipótese de racismo atribuída a ele. Publicado em 1920, o conto expõe as desventuras de uma órfã de 7 anos, filha de mãe escrava, que sofre maus tratos físicos e psicológicos enquanto vive na casa da patroa.
Sob a pena de Lobato, órfã de pai aos 4 anos e nascida na senzala, Negrinha é vítima de um ambiente social injusto e racista e dos abusos de Dona Inácia, “uma virtuosa senhora” que, como é práxis do bondoso coração aristocrático, acredita estar fazendo uma obra de caridade ao abrigar a criança: “Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu.” (LOBATO, 2012, n.p).
Nos domínios da caridosa senhora, a menina – pobre, negra, principalmente oprimida – passa fome, frio, e, fazendo ou deixando de fazer algo, havendo ou não havendo motivo, é castigada por adultos. Junto com as cicatrizes da pele, há a tortura psicológica: Negrinha é apelidada dos mais abjetos nomes e, como geralmente ocorre em situação de intenso martírio, qualquer prazer lhe é tirado.
Tempo foi que era bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim – por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida – nem esse de personalizar a peste. (LOBATO, 2012, n.p).
Dona Inácia, representando uma classe dominante, rica, branca e opressora vivendo em contexto de pós-escravidão, não parece muito favorável à abolição da escravatura e aos novos “direitos” adquiridos pelos negros: “O 13 de Maio tirou-lhe das mão o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo.”
Assim, sob o ponto de vista de uma parcela da classe dominante que atua em em país preconceituoso, apesar de supostamente democrático, Negrinha representa outra classe social: a dos não-humanos, da não-pessoa, do animal sem alma que precisa o tempo todo ser domesticado. Em resumo, a minoria sem voz; historicamente massacrada e mal tolerada por um estrato social que acredita ter concedido todos os benefícios à negritude quando de sua alforria. Aquela que incomoda ao gritar por um direito que seja; a que é diariamente mortificada, castigada ou abatida pela polícia.
Foi assim com aquela história do ovo quente. […] Uma criada nova furtara do prato de Negrinha – coisa de rir – um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreu revolta – atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias. […] Veio o ovo. Dona Inácia mesma pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na predileção da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. […] Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água “pululando” um ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. […] E a virtuosa dama voltou contente da vida ao trono, a fim de receber o vigário que chegava. (LOBATO, 2012, n.p)
Enquanto minoria conhecedora apenas de sua realidade, Negrinha aceita passivamente o cruel papel que lhe é imposto. Até que chegam duas louras, ricas e lindas sobrinhas de Dona Inácia e o ambiente se ilumina em risos, saltos e brincadeiras, iludindo a pobre e marginalizada órfã, dando-lhe a impressão de que se as fidalgas (prepostas da burguesia festiva) podem foliar, ela também o pode. Nesse momento, no entanto, “a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos o som cruel de todos os dias: ‘Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga?’”
Apesar do primeiro arroubo, a disposição para a maldade é alterada em Dona Inácia ao ver o embevecimento da criança com a primeira boneca vista e abraçada por ela. Apiedou-se a antes teoricamente piedosa senhora. Permitiu que nascesse uma nesga de sorriso no rosto da pobre menina que, a partir de então, percebeu também ser gente.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa – e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava! Assim foi – e essa consciência a matou. […] Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a. (LOBATO, 2012, n.p).
Morre de tristeza Negrinha ao entender que não vive o que deveria viver; que não goza dos direitos que deveria ter. Morrem negrinhas todos os dias no Brasil até hoje, sem a vida que deveriam viver; sem os direitos que deveriam ter.
Na falta das certezas eternas, pode-se considerar que “polêmico, controverso e multifacetado” são adjetivos justos para Monteiro Lobato: assim como crítico, visionário, combativo; um homem que não só discutia como também espelhava as contradições de seu tempo.
REFERÊNCIAS:
BECKER, Nilza de Campos. A Contemporaneidade de Monteiro Lobato. Fronteira Z, 2011. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/fronteiraz/article/view/12244. Último acesso em 03 de abril de 2021.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 52ª edição. São Paulo: Cultrix, 2017.
LOBATO, Monteiro. Negrinha. São Paulo: Editora Globo, 2012.
LOBATO, Monteiro. Urupês: edição ilustrada. Formato e-book. Z Edições, 2019.
LOBATO, Monteiro. O Presidente Negro. São Paulo: Editora Globo, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano demasiado humano I. São Paulo, Cia das Letras: 2005.

Adna Maria é pernambucana, bibliófila e aspirante a escritora. Tem formação em Jornalismo e Geografia e é especialista em Língua Portuguesa e Literatura.